sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Crítica: "Os Miseráveis" (filme)

"Os Miseráveis" estreou em Portugal. E a recepção por parte do público foi curiosamente positiva. Tanto que estreou na sala 4 do Almada Fórum e uma semana depois foi transferido para a sala 2 que é maior.
Depois chegaram os críticos de cinema e os leigos armados em críticos. Eu não sou crítico de cinema, a minha praia são os musicais. Mas li algumas críticas e eis o que posso dizer sobre elas: há três tipos de crítico - o que gostou do filme, o que não gostou e sabe dizer porquê, e os ignorantes que não gostaram porque o comparam ao livro e não perceberam a mensagem porque não prestaram atenção às letras.
Antes de mais cumpre dizer uma coisa, que de tão simples até espanta ter de a escrever: este filme NÃO É UMA ADAPTAÇÃO DO LIVRO. É uma adaptação DO MUSICAL. Quem falha em perceber isto e depois reclama do filme porque não é como o livro, acaba, simplesmente, a fazer figura de urso.
Dito isto, passemos à crítica do filme em si.  
A adaptação cinematográfica do musical "Les Misérables" é falada há anos. Há mesmo muitos anos. Mas até então nenhum estúdio tinha tido a audácia de avançar com ela. No entanto, nos últimos anos, começou a assistir-se - em boa-hora - a um regresso das adaptações musicais ao grande ecrã. Infelizmente essas adaptações falharam quase todas. Ora porque o musical escolhido não é propriamente conhecido e material que atraia público ao cinema - casos de "Nine" e "Rock of Ages" - ora porque o musical é conhecido mas é composto por um elenco de actores e actrizes que, independentemente do talento para representar, cantam tão bem como um porco na matança - casos de "O Fantasma da Ópera" e "Mamma Mia".
Também nos últimos anos, muito graças a Andrew Lloyd Webber, começaram a ser filmados vários musicais para serem exibidos em cinemas e lançados em Blu-Ray e DVD. Foi assim que chegaram gravações como "Les Misérables - 25th Anniversary Concert" (o 10º Aniversário já havia sido lançado em DVD), "The Phantom of the Opera - 25th Anniversary", "Love Never Dies", "Jesus Christ Superstar -Arena Tour" etc.
Este novo fôlego veio, aparentemente, dar coragem aos estúdios para avançarem finalmente com a aguardada adaptação a filme de "Les Misérables". Luz verde no projecto e surgiu a primeira preocupação de todos aqueles que haviam visto o musical em palco e haviam visto o que acontecera com adaptações anteriores de musicais a filme: o elenco.

Felizmente o elenco de "Les Misérables" não era de grande preocupação. Os figurantes e personagens terciários membros do elenco da produção londrina do musical e outros actores de teatro musical. As personagens principais eram também uma mistura saudável de actores de teatro e de cinema.

Do teatro:
O papel de Jean Valjean foi dado a Hugh Jackman, actor de cinema E teatro, com várias provas dadas em palco ao longo dos anos. Todos sabiam que Hugh sabe cantar bem.
O papel de Eponine foi atribuído a Samantha Barks, actriz do West End que veio directamente da versão de palco do musical e que já havia estado no concerto do 25º Aniversário.
Enjolras, o jovem revolucionário, seria interpretado por Aaron Tveit, um jovem actor da Broadway que tinha acabado de sair do papel de Frank Abagnale Jr. na versão musical de "Catch me if you can"
Marius Pontmercy seria também atribuído a um jovem actor - Eddie Redmayne - desta vez do West End, que já havia ganho 1 Olivier Award bem como 1 Tony para melhor actor numa peça.
O papel do Bispo de Digne, aquele que dá a Valjean a oportunidade de começar uma vida nova, foi atribuído ao actor Colm Wilkinson, veterano dos palcos e também o actor que criou a personagem de Jean Valjean na versão original do musical em 1985 (e novamente no Concerto do 10º Aniversário)
Ao pequeno Daniel Huttlestone, que já actuara em 2009 no revival do musical "Oliver!" ao lado de Rowan Atkinson e na versão de palco de "Les Misérables", foi-lhe atribuído novamente o papel de Gavroche.

Do cinema:
Fantine seria interpretada por Anne Hathaway que também já havia provado em edições dos Óscares que escondia uma voz afinada e poderosa.
Thénardier seria interpretado por Sacha Baron Cohen, o comediante responsável por Borat, Brüno, Ali G e O Ditador. Baron Cohen já havia participado no papel de Pirelli na versão de Tim Burton do musical de Stephen Sondheim "Sweeney Todd".
A Helena Bonham Carter, a esposa de Tim Burton e presença assídua nos filmes dele, foi atribuído o papel de Madame Thénardier. Bonham Carter não só já havia dado a voz à "Noiva Cadáver" como participara também na adaptação de "Sweeney Todd", no papel de Mrs. Lovett.
O papel de Cossette ficou a cargo de Amanda Seyfried, que já havia participado na adaptação cinematográfica de "Mamma Mia".
Já o papel do Inspector Javert foi atribuído ao actor Russell Crowe, veterano de Hollywood,que já havia tido alguns projectos musicais, mas que, nem de perto nem de longe tinha preparação vocal para o papel. O casting the Russell Crowe foi, obviamente aquele que mais apreensão causou aos fãs do musical.

Em poucas palavras, "Os Miseráveis" é uma grandiosa adaptação de um grandioso musical, ligeiramente manchada pelos actores principais: um que não sabe cantar e outro que não quis cantar.
Em termos de representação, não há nada a apontar a nenhum membro do elenco. Foram todos impecáveis a todos os níveis. Vocalmente as coisas variaram mais.
Dos actores vindos do Teatro, nenhum deles desapontou à excepção de Hugh Jackman. Talvez as minhas expectativas estivessem demasiado altas por saber o que Jackman é capaz de fazer, mas a sua performance vocal no filme não foi das melhores. A decisão de declamar alguns dos versos ou simplesmente falar o texto não lhe saiu sempre bem. Ainda assim, isto é escrito do ponto de vista de alguém que está habituado à versão de palco. A única música onde Hugh Jackman se espalhou ao comprido foi, em nosso entender, na ária Bring Him Home. O filme foi gravado com voz ao vivo, e isso foi positivo, mas neste caso, ter-se-ia justificado a dobragem em estúdio. Ou a alteração da melodia para a trazer umas oitavas para baixo. A música é bastante difícil de cantar porque tem muito falsetto e Hugh viu-se aflito com ela. Este foi, assim, o actor que, sabendo cantar muito bem, optou por não o fazer. Talvez para não copiar Colm Wilkinson. Mas mais valia tê-lo feito.
Russell Crowe que, sejamos francos, não sabe cantar, não se saiu tão mal como eu estava à espera. É claro que o solo "Stars" não ficou nem de perto nem de longe tão poderoso como é suposto, mas podia ter sido pior. Crowe teve o cuidado de ter 4 meses de aulas de canto antes do filme e isso viu-se. Infelizmente, tal como acontecera com Gérard Buttler n' "O Fantasma da Ópera", 4 meses de aulas para um papel daqueles não é suficiente. Contudo, ao contrário de Buttler, Crowe compensou a falta de voz com uma soberba representação a nível emocional e corporal (porque, há que dizê-lo, não teve grandes oportunidades para falar).
Amanda Seyfried manteve o seu estilo, mas há que dizer que também não havia muito que fazer com o papel de Cossette (adulta). É o papel da donzela em apuros e apaixonada. Pouco mais.
A comic relief do filme é-nos dada pelo casal Thénardier. E há que dizer que a escolha de Sacha
Baron Cohen para o papel do estalajadeiro não poderia ter sido melhor (talvez só Rowan Atkinson tivesse conseguido transpor o papel com igual mestria, fosse ele 20 anos mais novo). Ao seu lado Helena Bonham Carter faz uma boa parelha. Se bem que, há que dizer, Bonham Carter não tem propriamente das melhores vozes. Neste musical não é tão grave como foi a sua escolha para Mrs. Lovett em Sweeney Todd, mas ainda assim. Felizmente, tal como Crowe, Helena tem os talentos de actriz a compensar.
Anne Hathaway interpreta maravilhosamente o papel de Fantine. Está nomeada para o Óscar e será uma injustiça se não o ganhar.
O resto do elenco dispensa comentários. São gente do teatro musical, e portanto vocalmente foram óptimos, como seria de esperar.
No que à adaptação diz respeito, esta foi bem conseguida. Se bem que continuo sem perceber como é que conseguiram transpor um musical de 3 horas para um filme de 3 horas e mesmo assim cortar tanta música e encurtar outra tanta. Por outro lado foi composta uma música nova, especialmente para o filme. "Suddenly" é um solo para Valjean cantar enquanto vela a pequena Cossette. Sinceramente é uma música completamente desnecessária e, francamente, não muito boa (e mereceu perder o Globo de Ouro para "Skyfall").
Os cenários são brilhantes e o filme está magistralmente filmado por Tom Hooper que já havia feito um excelente trabalho em "O Discurso do Rei". A única coisa que achei um tanto repetitiva foram os close-ups durante as canções emocionais.
Também o guarda-roupa é muito bom. Tirando talvez a escolha de guarda-roupa para Helena Bonham Carter que a tornou numa espécie de Bellatrix Lestrange meets Mrs. Lovett.

Em Portugal há só uma nota de repúdio e nojo que devo fazer e essa vai para a empresa de legendagem. As legendas em Portugal só fazem jus ao título do filme. São MISERÁVEIS. Não só estão descaradamente em Brasileiro adaptado a Acordês, como a pessoa encarregue delas decidiu tentar adaptar as letras de forma a que se pudesse cantar com a música. Só que, como é comum em Portugal, falhou miseravelmente. Quem viu o filme e se baseou nas legendas em Português é normal que não tenha percebido metade do que se passou. A esses aconselho a verem o filme novamente, ignorarem COMPLETAMENTE as legendas, e prestarem somente atenção às letras que estão a ser cantadas em Inglês.

"Os Miseráveis" é certamente um grande filme e só está a duas performances vocais de distância de ser um filme perfeito. Sem dúvida é das melhores adaptações cinematográficas de um musical ao cinema. Não sei se ganhará o Óscar para melhor filme, mas se o ganhar é merecido. 9/10.